domingo, 22 de dezembro de 2024

Os olhos de Cristina

 


Os olhos de Cristina

Inquietos, sacudidos pelo bulício da cidade antiga, os olhos de Cristina vieram da cidade nova e são dois faróis a avisarem a navegação das próximas tempestades quotidianas. Cristina saiu da estação do Metro da Baixa-Chiado e atravessou a muralha mandada construir por D. Fernando para beber um café e comer um bolo. Vista ao longe, diluída na pressa dos semáforos, Cristina não é apenas uma mulher. É também a imagem de uma cidade. Cidade habitada por afectos, cruzada por ruas de sonhos, por praças projectadas na vontade de ser feliz. Se Lisboa é uma cidade-mulher, luminosa e pronta a ser conquistada todas as manhãs, Cristina é uma mulher-cidade e os seus olhos, ora inquietos ora serenos, são as portas dessa cidade luminosa mas apenas existente nas metáforas e nas imagens. À direita, o Rio Tejo dá nos olhos de Cristina a ilusão de estar colocado nos últimos telhados da Rua do Alecrim. («Alecrim, alecrim aos molhos, por causa de ti choram os meus olhos» – diz a cantiga popular. Adiante.) Os cacilheiros, repletos de pessoas e de viaturas parecem desaguar num cais insólito feito de telhas antigas e de gaivotas ruidosas. Para o fim da tarde, no regresso a casa na cidade nova, os olhos de Cristina estão serenos pelo cansaço e pela presença luminosa de Raquel, sua filha. Se de manhã se juntou a cidade-mulher (Lisboa) à mulher-cidade (Cristina) então de tarde vemos que a mistura feliz é da mulher-menina (Cristina) com a menina-mulher (Raquel). Os olhos de Cristina, motivo do texto, são uma espécie de selo branco que vai certificar o momento feliz de encontro e de plenitude que esta crónica procura representar. Ou seja: dar um testemunho feito de palavras resgatadas à pressa da cidade. 

José do Carmo Francisco


(Fotografia de Luis Eme - Lisboa)


segunda-feira, 16 de dezembro de 2024

Cais do Gás

 

Cais do Gás

Sobe do Mar da Palha um som distante.
Talvez um barco que de longe, espera um rebocador na barra.

Sobe até aos meus ouvidos o ruído da água na pedra.
Repetição do movimento inicial do degelo
quando todos os rios começaram no leito da ternura.

É este o cais das grandes despedidas sempre adiadas.
Por aqui passou há muitos anos o receio
do aviso da mobilização

Mobilizado estava mas só para as pequenas guerras diárias
do sofrimento interior - resmungou a meia voz.
Ainda hoje não sabe se deve dizer barco ou navio.

[José do Carmo Francisco, in "De Súbito"]


(Fotografia de Luís Eme - Tejo)


terça-feira, 10 de dezembro de 2024

Retrato breve de Filipa em Vila Franca

 


Retrato breve de Filipa em Vila Franca
 
Flor da Lezíria, menina
Em Vila Franca, cidade
Descobre a cada esquina
O mapa de uma saudade
Passam alunos da Escola
Que ficam na fotografia
Todos usam camisola
A manhã está muito fria
Fecharam as tronqueiras
Já se sente uma emoção
As paixões verdadeiras
Não precisam explicação 
Entre gaibéus e avieiros
Passa a memória sentida
Do Tejo a encher esteiros
Com água que traz a vida
Os barcos cheios de areia
Chegam de manhã ao cais
Hoje o Gil Conde passeia
Nas águas do nunca mais
E no comboio que passa
Tão veloz para o Oriente
Há memória da barcaça
Com automóveis e gente
Ao lado fica um jardim
O ringue de patinagem
Os jogos não tinham fim
As palmas eram coragem
Olha de longe o Mouchão
Onde só olhar é preciso
E a terra vem dar razão
A quem busca o paraíso
Água, fogo, ar e terra
Conjugados num lugar
Coração em pé de guerra
Tem um poema de cantar
Flor da Lezíria, menina
Em Vila Franca, cidade
Descobre a cada esquina
O mapa de uma saudade
 
José do Carmo Francisco

(Fotografia de Luís Eme - Vila Franca de Xira)

sábado, 30 de novembro de 2024

Balada dos telhados de Lisboa

 


Balada dos telhados de Lisboa
 
Telhados da minha cidade
Com as gaivotas a gritar
Avisos de tempestade
Lá para dentro do mar.
Que o mar à nossa frente
É mais a figura de estilo
Mar da palha e da gente
Só no Verão está tranquilo.
Rompe defesas no Inverno
Traz a palha dos animais
Para o estuário moderno
Que vive de outros sinais.
Que vive de outras medidas
Sem fragatas nem faluas
As pontes de ferro erguidas
Enchem de carros as ruas.
E digo adeus aos telhados
Da cidade debruçada
Sobre vapores lembrados
Numa memória de nada.
 
José do Carmo Francisco 


(Fotografia de Luís Eme - Lisboa)

sexta-feira, 15 de novembro de 2024

"Pombalesca"


"Pombalesca"

Os pombos sabem História...
Guardam na memória
Quem refez Lisboa.
Em cada cornija, em cada beiral,
Tagarelando p' las ruas à toa,
Cada pombo, que a sobrevoa, 
Sabe que Lisboa
É um pombal!

Um pombinho, que no Rossio
Anda com outros a desafio,
Petiscando migalhas
Que lhe atira uma menina,
Sabe que, do Rio até às muralhas, 
Lisboa, cidade genuína,
Com seus beirais e cimalhas,
Ficou pombalina!...

[Rui Palma Carlos, in "Lisboética e outros poemas"]

(Fotografia de Luís Eme - Lisboa)


sexta-feira, 25 de outubro de 2024

"Não sentes o cheiro a maresia?"

 


«Não sentes o cheiro a maresia?  O Tejo, pois minha flor, cantado por poetas e vagabundos, marginais e aventureiros, que, afinal, são uma e a mesma pessoa. Milagres? Só o santo, querida! O Sant ‘Antoninho que também protegia os namorados, repara como ele está bonito e bem humano, nesse altar ingénuo.»

 

                                                           [Eduardo Guerra Carneiro, “Sete”, 20 Jun 79]


(Fotografia de Luís Eme - Lisboa)


domingo, 20 de outubro de 2024

"Convém não esquecer o brilho do Tejo..."


«Convém não esquecer o brilho do Tejo que aparece por entre uma viela, um beco, umas escadas, do cimo de um adro de igreja. Peregrinar, como diria o mestre, é afinal divagar. No café da D. Teresa “flippers” a piscarem luzinhas e a darem bip-bip, as cerimónias do Dia de Portugal lá em cima nas terras da tua infância, um metalúrgico-fadista que não chegou a cantar o fado pois as senhoras queriam ver a TV e as variedades, zangado comigo por querer ir-me embora, uma sopa bem quente para cortar a ressaca.»

 

                                                           [Eduardo Guerra Carneiro, “Sete”, 20 Jun 79]


 (Fotografia de Luís Eme - Lisboa)



segunda-feira, 30 de setembro de 2024

"Os Montes Claros"...


«Os Montes Claros tornaram-se o lugar de eleição de Kaloust, O Chauffeur levava-o com regularidade para uma clareira de onde o magnata, sentado por baixo de uma acácia, permanecia horas a contemplar o estuário do Tejo em toda a sua largura por cima da copa das árvores, com as colinas da outra margem recortadas a cinzento acima do horizonte azul.»

[José Rodrigues dos Santos, in "Um Milionário em Lisboa"]


(Fotografia de Luís Eme - Lisboa)


quarta-feira, 25 de setembro de 2024

"A larga bacia resplandecente do Tejo"


«A larga bacia resplandecente do Tejo estendia-se em frente à cidade, à esquerda, como um vasto piso de mármore espelhado por onde os cacilheiros da Parceria dos Vapores Lisbonenses  deslizavam com preguiça de tartaruga, enquanto Almada espreitava na outra margem. O Sol deitava-se já num prenúncio de crepúsculo, rasgando o céu em aguarelas vermelhas e lilases e arrancando ao arménio um suave suspiro de nostalgia.»

[José Rodrigues dos Santos, in "Um Milionário em Lisboa"]


(Fotografia de Luís Eme - Tejo)


sábado, 10 de agosto de 2024

"O ar, a cor, a luz..."


«O ar, a cor, a luz... A maneira como a cidade se foi adaptando à orografia, tornando-se barroca no sentido das perspetivas inesperadas. Vai-se na Rua da Escola Politécnica, olha-se para a esquerda e tem-se o Tejo lá em baixo. É também barroca no sentido da surpresa, é feita de pequenos recantos onde tudo se encaixa. Isto é das coisas que mais me encanta. E a luz, claro, que tem a ver com a sorte de apanhar o vento norte que limpa tudo e fica só a reflexão da bacia do mar da Palha. Neste aspeto, Lisboa tem uma condição única. Tem o mar à frente. Só é comparável a Istambul.»

[José Sarmento de Matos, in "E (Expresso)", 6 de Maio de 2017]


(Fotografia de Luís Eme - Lisboa)


domingo, 28 de julho de 2024

"O Tejo quando ainda tinha fragatas..."

 

«O Tejo quando ainda tinha fragatas a passearem-se pelas águas e voavam golfinhos a caminho da Barra.
O José Quitério a falar dos prazeres de uma caldeirada, à fragateiro, na “Floresta do Ginjal”, com fragatas a entrarem-lhe pelos olhos dentro.
O grito das gaivotas, o vai-vem dos cacilheiros, um estado de espírito ondulado.
Esta fotografia deslavada foi tirada com um caixote-kodak,  a minha primeira máquina fotográfica, prenda, pelos meus 15 anos, do António Colaço.
Memórias doces e afáveis.»
 
[Sammy, in “Cais do Olhar”]


(Fotografia e texto publicados no blogue "Cais do Olhar", a 11 de Janeiro de 2011)


sexta-feira, 26 de julho de 2024

"Era bom que trocássemos umas ideias sobre o assunto"


«Vitorino emagreceu, o bigode foi-se-lhe tornando todo branco. Um belo dia, juntou-se com Vera Quitério, no velho apartamento das Avenidas, e passou também a dizer "era bom que trocássemos umas ideias sobre o assunto".

Uma ocasião, Jorge Matos encontrou-o e dirigiu-lhe pela quinquagésima vez a pergunta que todos os comunistas de todo o Mundo já se fizeram, no íntimo, pelo menos quatrocentas vezes: "que significa ser comunista, hoje?". Vitorino recolheu-se, sisudo, durante um momento brevíssimo. Depois, abriu um sorriso jovial, de orelha a orelha, e deu-lhe uma palmada sonora nas costas: "É pá, tem calma, pá!", disse.

E o Tejo continuou a correr, e os tempos a não haver meio de os parar.»

 

[Mário de Carvalho in "Era bom que trocássemos umas ideias sobre o assunto"]

(Fotografia de Luís Eme - Ginjal)


domingo, 30 de junho de 2024

"No Fundo do Tejo"


No Fundo do Tejo


Fecho os olhos e vejo
No fundo Tejo
Uma coisa que oscila ao sabor da corrente
Que vai e vem, que deambula rente
Às pedras e conchas macias e frias.
Dias e noites, noites e dias.

Uma coisa que as águas desfazem sem nojo,
Levando-a de rojo
No fundo do Tejo:
Uma coisa que eu vejo,
Uma coisa que eu sinto e não sei o que é,
- Tão longe de mim, tão fora de pé!
[...]

Uma coisa que anda de cá para lá,
De lá para cá,
No fundo do Tejo:
Sem rumo, sem dono, sem nome, sem graça.
- Inútil e triste, como a carcaça
De um caranguejo.

Uma coisa disforme, insensível, alheia.
- Mas que escreve, sem querer, o nome meu na areia!

[Carlos Queirós, in "Desaparecido"]

(Fotografia de Luís Eme - Tejo)


sexta-feira, 28 de junho de 2024

"A Água-Furtada"

 

A Água-Furtada

«Mas a vista era o melhor do quarto. Daquela água furtada seguia-se o Tejo por aí acima, desde o mar até perder-se à esquerda. Em redor as casas ficavam devassadas por aquela janela de telhado e as traseiras dos prédios com a actividade das criadas davam ao Antunes a impressão de entrar no segredo dos andares. Uma por uma, cada janela por onde os seus olhos entravam sabiam-lhe a ninho.

A cama de ferro, a mesa de pinho, a cómoda indigente, o lavatório inventado e o espelho da lata justo para a cara... não havia mais remédio do que ir recompensar-se no panorama.

Do seu novo quarto. Lisboa parecia ao Antunes uma cidade desconhecida com as traseiras de fora. Interiormente, parecia-lhe que a sua vida acabava de bem merecer aquele franciscanismo. Mas o verdadeiro merecimento deste novo quarto para o Antunes consistia em que tudo o que a ele tinha acontecido até esta água-furtada era para rasgar. Só depois de bem rasgado tudo o que de até este quarto é que Antunes poderia então começar a pensar na maneira de arranjar para si uma nova alma mais competente.»

[Almada Negreiros, in "Nome de Guerra"]


(Fotografia de Luís Eme - Lisboa)


quinta-feira, 30 de maio de 2024

Canto Décimo - 144

 

Assi foram cortando o mar sereno,
Com vento sempre manso e nunca irado,
Até que houveram vista do terreno
Em que naceram, sempre desejado;
Entraran pela foz do Tejo ameno,
E à sua Pátria e Rei temido e amado
O prémio e glória dão por que mandou
E com títulos novos se ilustrou.

[Luís de Camões, In "Lusíadas"]


(Ilustração de Lima de Freitas)


quarta-feira, 29 de maio de 2024

Canto Décimo - 10

 

Cantava a bela Deusa que viriam
Do Tejo, pelo mar que o Gama abrira,
Armadas, que as ribeiras venceriam
Por onde o Oceano Índico suspira;
E que os Gentios reis que não dariam
A cerviz sua ao jugo, o ferro e ira
Provariam de braço duro e forte,
Até render-se a ele ou logo à morte.

[Luís de Camões, in "Lusíadas"]


(Ilustração de Lima de Freitas)


terça-feira, 30 de abril de 2024

"Peregrinação"



Peregrinação

Este vento que, há muitas horas, clama,
Bem o sinto cá dentro: é por mim que ele chama...
Com amorosas vozes me persiade
A errar por esses mares da Ansiedade,
De fúnebre estridor,
Onde o meu sonho é sempre em flor e em dor!

Ele me quer a par das rotas velas,
Que demandam estrelas;
Ele me quer a arder em um delírio rubro,
por esses alcantis, a ver se inda descubro
Novos céus, novas gentes,
Arquipélagos de oiro incandescentes!

- Ó vento heróico e louco,
Da barra azul do Tejo,
Aberta ao meu desejo;
Vento da história, vento da Lenda,
Evoco,
Ao teu clamor, os uivos da tormenta; 
A vaga a revolver-se amaramente odienta;
[...]
- Ó vento, leva-me contigo!

[Mário Beirão, in "Mar de Cristo"]


(Fotografia de Luís Eme - Tejo)

domingo, 28 de abril de 2024

"O Ribatejo"


«A parte inferior da bacia do Tejo forma um conjunto de terras baixas, a menos de 200 metros de altitude - a maior mancha plana do território português.

As margens dos rios constituem a Leziria inundada pelas cheias, em cujos nateiros se semeia trigo, se plantam legumes e se desenvolvem prados naturais aproveitados na criação, em larga escala, de touros e cavalos. As touradas portuguesas nasceram aqui e o campino, sempre a  cavalo, munido de longa vara com que sujeita os bois à manada. é um tipo humano inseparável desta paisagem rara,»

[Orlando Ribeiro, in "Terra Nossa"]

(Fotografia de Luís Eme - Vila Franca de Xira)


sábado, 30 de março de 2024

"Felizmente..."


Felizmente as palavras às vezes também diminuem,
o mar, por exemplo,
para caberem nele os náufragos e os rios.

Sobretudo o Tejo
do tamanho dos corpos das crianças
com a água dentro das sacolas
a aprenderem para sereias
com cantigas e rondas
no giroflé das areias.

Eram levadas em rebanhos
de chapeladas redondas
para a fraternidade dos comícios dos banhos.

Enquanto as mães de xaile,
felizes de sol salgado
assistiam ao baile
dos filhos com as ninfas ainda sem seios de ondas.


[José Gomes Ferreira, in "Poesia VI"]


(Fotografia de Luís Eme - Ginjal)


                                          quinta-feira, 28 de março de 2024

                                          "Lembro-me de Repente..."


                                          «Lembro-me de repente é de quando morávamos em S. Pedro de Alcântara. Tínhamos lindas vistas para o jardim, para a Graça e o Castelo, cheios de sol, e mesmo para os longes do rio na hipótese de um apetite viageiro. Mas, como todas as vistas, mesmo as bonitas, deixámos logo de as ver.»


                                          [Vergílio Ferreira, in "Em Nome da Terra"]


                                          (Fotografia de Luís Eme - Lisboa)


                                          quinta-feira, 21 de março de 2024

                                          "Lisboa Pequenina"

                                           

                                          Lisboa Pequenina (fado)


                                          Oh, Lisboa pequenina
                                          és um pregão de varina
                                          a menina dos meus olhos
                                          põe-me um braço na cintura
                                          dá-me um beijo com ternura
                                          veste uma saia de folhos

                                          Pus no dedo uma aliança
                                          mandei vir uma criança
                                          que é filha da Madragoa
                                          outra linda assim não vejo
                                          fui baptizá-la no Tejo
                                          dei-lhe o nome de Lisboa
                                          […]


                                          Tiago Torres da Silva


                                          (Fotografia de Luís Eme - Lisboa)

                                           

                                          terça-feira, 19 de março de 2024

                                          Queria embarcar num cacilheiro e navegar..."


                                          «Olhou a janela do quarto da residencial, descobriu uma rua pouco movimentada que o confundia. Ao longe esperava-o um quadro diferente, o Tejo das horas boas e das horas más.

                                          Voltava a sentir um desejo avassalador de percorrer as ruas de Lisboa e olhar ninfas que prometiam coisas que nunca cumpriam. Parar em esplanadas carregadas de inúteis que apenas sabiam contar anedotas com barbas e conversar sobre o tempo. Queria embarcar num cacilheiro e navegar no rio grande que transformava a capital numa ilha.»

                                          [Luís Alves Milheiro, in "Bilhete para a Violência"]


                                          (Fotografia de Luís Eme - Tejo)


                                          quinta-feira, 29 de fevereiro de 2024

                                          "Fragatas"

                                            


                                          Eram casinhas ponteagudas
                                          movidas pela associação do vento com os panos.
                                          Deslizavam formando pequenos relevos alvos
                                          que se desdobravam nas águas azuis, ainda límpidas.
                                          Havia alegria nos que habitavam as embarcações, 
                                          alegria que se transmitia à passagem coalhada
                                          de gémeas de muitas cores.
                                          Só as velas eram brancas.
                                          - Mas as gaivotas também!
                                          E os vôos altaneiros, com piares de entendimentos
                                          eram a vocação de sentinelas felizes
                                          que sentiam a plenitude poética deste Tejo.


                                          [Fernando Barão, "In Margem Sul"]


                                          (Fotografia de Luís Eme - Tejo)


                                          Nota: Porque hoje é dia de homenagear este Amigo, recordo aqui um dos seus poemas com Tejo, barcas e gaivotas...


                                          domingo, 25 de fevereiro de 2024

                                          "Ficou ainda a música no ar..."


                                          «Havia um contraste muito forte entre a tua imagem e o azul do rio bastante largo para parecer um mar. Digamos que não era bem o teu corpo que me afligia mas sim tu que estavas nele e eu não conhecia. Veio um cego de acordeão cheio de sol e houve música também entremeada à luz. Um criado expulsou-o mas ficou ainda a música no ar, e toda a gente, pareceu-me, ficou contente com a música que não ouviu mas se espalhou na esplanada, agora sem a cegueira triste do homem que a fez existir. E eu sorri porque tu paraste depois de algumas garfadas e ficaste a olhar o invisível.»


                                          [Vergílio Ferreira, in "Em Nome da Terra"]


                                          (Fotografia de Luís Eme - Almada)


                                          domingo, 28 de janeiro de 2024

                                          "Écloga"

                                           

                                          Écloga

                                          Pastora, grácil, vieste,
                                          sempre caminho do Sul...
                                          E rosa brava, trouxeste,
                                          nos cabelos, um agreste
                                          céu azul...

                                          Tu me encontraste, pastora,
                                          velado, sem nenhum céu.
                                          Mas agora um céu me doura
                                          a vida que, muito embora,
                                          se perdeu...

                                          Era nas margens do Tejo...
                                          (Nem noutras margens seria).
                                          Sobre nós dois, o adejo
                                          das gaivotas, num desejo
                                          de alegria...

                                          E não mudou o cenário
                                          para pastor e pastora.
                                          Mas o Fado, sempre vário, 
                                          muda a história do cenário,
                                          de hora a hora...

                                          [...]

                                          E condenaram-me a tanto:
                                          viver, viver... e sem ti!
                                          Vivendo sem no entanto
                                          me ausentar daquele encanto
                                          que perdi...

                                          O Tejo, verde e correcto,
                                          como no tempo passado...
                                          Eu, porém, mais inquieto,
                                          e, por este mal secreto,
                                          - tão mudado!

                                          [David Mourão-Ferreira, in "A Secreta Viagem"]

                                          (Fotografia de Luís Eme - Trafaria)

                                          quinta-feira, 25 de janeiro de 2024

                                          "Poema da Memória"


                                          Poema da Memória
                                           
                                          Havia no meu tempo um rio chamado Tejo
                                          que se estendia ao Sol na linha do horizonte.
                                          Ia de ponta a ponta, e aos seus olhos parecia
                                          exactamente um espelho
                                          porque, do que sabia,
                                          só um espelho com isso se parecia.
                                           
                                          De joelhos no banco, o busto inteiriçado,
                                          só tinha olhos para o rio distante,
                                          os olhos do animal embalsamado
                                          mas vivo
                                          na vítrea fixidez dos olhos penetrantes.
                                           
                                          Diria o rio que havia no seu tempo
                                          um recorte quadrado, ao longe, na linha do horizonte,
                                          onde dois grandes olhos,
                                          grandes e ávidos, fixos e pasmados,
                                          o fitavam sem tréguas nem cansaço.
                                          Eram dois olhos grandes,
                                          olhos de bicho atento
                                          que espera apenas por amor de esperar.
                                           
                                          E por que não galgar sobre os telhados,
                                          os telhados vermelhos
                                          das casas baixas com varandas verdes
                                          e nas varandas verdes, sardinheiras?
                                          Ai se fosse o da história que voava
                                          com asas grandes, grandes, flutuantes,
                                          e poisava onde bem lhe apetecia,
                                          e espreitava pelos vidros das janelas
                                          das casas baixas com varandas verdes!
                                          Ai que bom seria!
                                          Espreitar não, que é feio,
                                          mas ir até ao longe e tocar nele,
                                          e nele ver os seus olhos repetidos,
                                          grandes e húmidos, vorazes e inocentes.
                                          Como seria bom!
                                           
                                          Descaem-se-me as pálpebras e, com isso,
                                          (tão simples isso)
                                          não há olhos, nem rio, nem varandas, nem nada.
                                           
                                          [António Gedeão in Poemas Póstumos]


                                          (Fotografia de Luís Eme - Tejo)