Quintal do Meu Olhar
Meu humilde rio, meu companheiro, quantas vezes te tenho
sido ingrata
e pensado; que pena não seres o mar
o alto mar selvagem!
Confesso que lhe apeteço
o sem limite
sem casas sem casos sem coisas
sem nada
Mas tu és o amplo quintal do meu olhar
quotidiano
onde crio minhas soltas gaivotas com o milho
dos meus versos
A líquida selva do mar não consente
as diárias labutas os pequenos júbilos do pobre bicho
que somos
Desculpa a ingratidão de às vezes te desejar maior
mais possante mais sozinho
És tão meu amigo!
No ir e vir dos pequenos barcos afadigados
me dás constantemente de vaia
e ofereces-me as brancas
flores de espuma em que te desentranhas enquanto
te vão sulcando
As tuas gruas e os teus guindastes sempre em sereno
movimento dão-me exemplos de apego
à vida
Anima-te!
Gritas à minha tristeza
sem interromper a tua lida
de fato de ganga e flor na orelha
sempre jovem
Não mudaste desde que te conheço
Que fazes para não envelhecer?
Talvez um dia destes quando a Lisnave
desaparecer
e desaparecerem os barcos as gruas os guindastes
eu perceba com o coração desfeito, que és mortal
[Teresa Rita Lopes, in "Afectos"]
(Fotografia de Luís Eme - Cacilhas)