quinta-feira, 29 de fevereiro de 2024

"Fragatas"

  


Eram casinhas ponteagudas
movidas pela associação do vento com os panos.
Deslizavam formando pequenos relevos alvos
que se desdobravam nas águas azuis, ainda límpidas.
Havia alegria nos que habitavam as embarcações, 
alegria que se transmitia à passagem coalhada
de gémeas de muitas cores.
Só as velas eram brancas.
- Mas as gaivotas também!
E os vôos altaneiros, com piares de entendimentos
eram a vocação de sentinelas felizes
que sentiam a plenitude poética deste Tejo.


[Fernando Barão, "In Margem Sul"]


(Fotografia de Luís Eme - Tejo)


Nota: Porque hoje é dia de homenagear este Amigo, recordo aqui um dos seus poemas com Tejo, barcas e gaivotas...


domingo, 25 de fevereiro de 2024

"Ficou ainda a música no ar..."


«Havia um contraste muito forte entre a tua imagem e o azul do rio bastante largo para parecer um mar. Digamos que não era bem o teu corpo que me afligia mas sim tu que estavas nele e eu não conhecia. Veio um cego de acordeão cheio de sol e houve música também entremeada à luz. Um criado expulsou-o mas ficou ainda a música no ar, e toda a gente, pareceu-me, ficou contente com a música que não ouviu mas se espalhou na esplanada, agora sem a cegueira triste do homem que a fez existir. E eu sorri porque tu paraste depois de algumas garfadas e ficaste a olhar o invisível.»


[Vergílio Ferreira, in "Em Nome da Terra"]


(Fotografia de Luís Eme - Almada)


domingo, 28 de janeiro de 2024

"Écloga"

 

Écloga

Pastora, grácil, vieste,
sempre caminho do Sul...
E rosa brava, trouxeste,
nos cabelos, um agreste
céu azul...

Tu me encontraste, pastora,
velado, sem nenhum céu.
Mas agora um céu me doura
a vida que, muito embora,
se perdeu...

Era nas margens do Tejo...
(Nem noutras margens seria).
Sobre nós dois, o adejo
das gaivotas, num desejo
de alegria...

E não mudou o cenário
para pastor e pastora.
Mas o Fado, sempre vário, 
muda a história do cenário,
de hora a hora...

[...]

E condenaram-me a tanto:
viver, viver... e sem ti!
Vivendo sem no entanto
me ausentar daquele encanto
que perdi...

O Tejo, verde e correcto,
como no tempo passado...
Eu, porém, mais inquieto,
e, por este mal secreto,
- tão mudado!

[David Mourão-Ferreira, in "A Secreta Viagem"]

(Fotografia de Luís Eme - Trafaria)

quinta-feira, 25 de janeiro de 2024

"Poema da Memória"


Poema da Memória
 
Havia no meu tempo um rio chamado Tejo
que se estendia ao Sol na linha do horizonte.
Ia de ponta a ponta, e aos seus olhos parecia
exactamente um espelho
porque, do que sabia,
só um espelho com isso se parecia.
 
De joelhos no banco, o busto inteiriçado,
só tinha olhos para o rio distante,
os olhos do animal embalsamado
mas vivo
na vítrea fixidez dos olhos penetrantes.
 
Diria o rio que havia no seu tempo
um recorte quadrado, ao longe, na linha do horizonte,
onde dois grandes olhos,
grandes e ávidos, fixos e pasmados,
o fitavam sem tréguas nem cansaço.
Eram dois olhos grandes,
olhos de bicho atento
que espera apenas por amor de esperar.
 
E por que não galgar sobre os telhados,
os telhados vermelhos
das casas baixas com varandas verdes
e nas varandas verdes, sardinheiras?
Ai se fosse o da história que voava
com asas grandes, grandes, flutuantes,
e poisava onde bem lhe apetecia,
e espreitava pelos vidros das janelas
das casas baixas com varandas verdes!
Ai que bom seria!
Espreitar não, que é feio,
mas ir até ao longe e tocar nele,
e nele ver os seus olhos repetidos,
grandes e húmidos, vorazes e inocentes.
Como seria bom!
 
Descaem-se-me as pálpebras e, com isso,
(tão simples isso)
não há olhos, nem rio, nem varandas, nem nada.
 
[António Gedeão in Poemas Póstumos]


(Fotografia de Luís Eme - Tejo)


quarta-feira, 27 de dezembro de 2023

"Tejo"


 
Tejo

É um lento e majestoso
Caudal de claridade
Que corre no teu leito,
Rio perfeito
Como o dia a passar,
Largo, sereno, aberto. 
Logo à partida, certo
De chegar...


[Miguel Torga, in "Diário XI"]


(Fotografia de Luís Eme - Tejo)


domingo, 24 de dezembro de 2023

"É Quase Natal"



É quase Natal

É quase Natal
e ali vai o pescador,
o velho do bigode 
e da camisa de flanela
com quadrados verdes.

Não sei o que é que ele vê
e encontra no Tejo.
Não acredito que queira
pescar um peixe
para a consoada.
Talvez queira apenas
estar só e abraçar
os seus fantasmas queridos
sem qualquer objecção.

É quase Natal
e ali vai o pescador,
com a cana ao ombro
como se fosse um dia
igual aos outros.

João Almeida


(Fotografia de Luís Eme - Ginjal)

sábado, 23 de dezembro de 2023

"Não me fales do Natal"



Não me fales do Natal

Não me fales do Natal.
Não é coisa que recorde
com alegria e saudade.
Pode parecer-te mal
mas falta-lhe verdade.

A verdade que encontramos
nas coisas simples da vida.
O mundo não é só um dia
quando amamos, amamos,
não se trata de uma fantasia.

Se olhares para  o rio
este Tejo de beleza única
 que diz sempre presente,
esqueces o falso e o vazio
 que cada um sente

É por isso que te peço,
e que não te pareça mal
fala-me de outras coisas
boas que nunca esqueço,
mas não me fales do Natal.

Zé Gê Éfe

(Fotografia de Luís Eme - Tejo)

quinta-feira, 30 de novembro de 2023

"Menina dos Olhos de Água"


Menina dos Olhos de Água


Menina, em teu peito sinto o Tejo
e vontades marinheiras de aproar.
Menina, em teus lábios sinto fontes
de água doce que corre sem parar.


Menina, em teus olhos vejo espelhos
e em teus cabelos nuvens de encantar
e em teu corpo inteiro sinto o feno
rijo e tenro que nem sei explicar.

Se houver alguém que não goste
não gaste - deixe ficar
que eu só por mim quero-te tanto
que não vai haver menina p'ra sobrar.

Aprendi nos "esteiros" com Soeiro
aprendi na "Fanga" com Redol.
Tenho um rio grande o mundo inteiro
e sinto o mundo inteiro no teu colo.

Aprendi a amar a madrugada
que desponta em mim quando sorris.
És um rio cheio de água levada
e dás rumo à fragata que escolhi.

Se houver alguém que não goste
não gaste - deixe ficar ...
que eu só por mim quero-te tanto
que não vai haver menina p'ra sobrar.


[Pedro Barroso, in álbum "Cantos da Borda d'água"]


(Fotografia de Luís Eme - Almada)

sábado, 25 de novembro de 2023

Conversa Com Fernando Pessoa no Martinho

 


Conversa Com Fernando Pessoa no Martinho
 
 
A casa continua como quando aqui paravas.
Talvez sejam os mesmos que agora a povoam
destas conversas sonolentas e cruzadas.
Ali ao longe o rio persiste em navegar
e só as águas envelheceram. O resto é
a cidade quer dizer o nevoeiro
que quando desembarcaste. Fala-se na esperança
e acredita-se no medo. O resto é a cidade
que cantaste e te desconheceu
e ainda desconhece os que procuram
o violino de palavras que criaste.
 
 
Manuel Alberto Valente


(Fotografia de Luís Eme - Lisboa)


sexta-feira, 20 de outubro de 2023

"Às vezes, ao fim da tarde..."


[...] «Às vezes, ao fim da tarde, descíamos a Avenida, depois a Baixa, íamos até ao rio. Nos dias de sol havia sempre junto da amurada crianças que olhavam deslumbradas para os barcos ou que corriam alegremente atrás das pombas.» [...]


[Maria Judite de Carvalho, in "tanta gente Mariana..."]


(Fotografia de Luís Eme - Lisboa)


terça-feira, 17 de outubro de 2023

"Cais de Lisboa"

                                 

                              Cais de Lisboa


Colunas de séculos passados
Onde o tempo não perdoa
São dois mastros apontados
Ao céu da Nossa Lisboa

Foste cais da realeza
Admirado, ainda és
Até a coroa inglesa
Ancorou a vossos pés

Nesses tempos da lonjura
Caravelas a partir
Homens bravos à procura
Dum mundo por descobrir

Gaivotas em movimento
No cais de tanta saudade
São como notas ao vento
Chilreando Liberdade

A nossa ponte imponente
De Abril só há gemidos
Mas o Tejo comovente
Amena os cravos esquecidos

Onde estão os cacilheiros
Que a câmara não captou?
Mais os velhos marinheiros
Que o pai Tejo adoptou?

Estas águas que nos levam
E nos corta a respiração
É o rio onde navegam
As mágoas que vão pró mar.

Luís Alves

(Fotografia de Luís Eme - Tejo)

quinta-feira, 28 de setembro de 2023

"Esta luta que se chama vida"

 


"Esta luta que se chama vida"

Maldito o rio: não é água mas suor.
Os dias passam e é sempre a mesma lida.
Mas um que luta é cada vez maior.
Bendita esta luta que se chama vida.

Muito cavalga o alvo e verde casario
Para aprender do rio e da serenidade.
Aquela espuma branca em que um barco o abriu
É um colar que põe no peito da cidade.

Dó eles suam mas só eles sabem
O preço de estar vivo sobre a terra.
Só nestas mãos enormes é que cabem
As coisas mais reais que a vida encerra.

Ruy Belo

(Fotografia de Luís Eme - Tejo)