segunda-feira, 31 de julho de 2023

"Este Rio" (o outro...)


«Recordo aquele rio que os parisienses enfeitam com barracas de velhas gravuras e livros em segunda mão, com tranquilos e esperançosos pescadores à linha, com estudantes, com namorados, com simples adoradores do Sol. E vejo este rio tão deserto. Porque é uma estranha cidade, esta que não o merece. Um rio tão belo como poucas cidades podem gabar-se de possuir. Lisboa, no entanto voltou-lhe as costas e transformou-o em objecto de luxo para ver ao longe. Uma espécie de quadro na parede. E anunciam-se no jornal casas, geralmente muitas casas, com vista para o rio. Com vista, é tudo.»

[parte inicial de uma das memoráveis crónicas de Maria Judite de Carvalho, imortalizadas no livro, "Este Tempo", datada de Dezembro de 1974]

Nota: Como disse noutra transcrição das palavras da Maria Judite, felizmente já neste novo século conseguimos resgatar o Tejo, voltámos a ter as suas margens libertas, para todos nós o pudermos usufruir...


(Fotografia de Luís Eme - Fonte da Pipa)



quarta-feira, 19 de julho de 2023

"Toda a bacia do rio, feito um mar, se limpou, se alisou, se esmaltou de preciosas cores e nelas corriam as microscópias velas brancas das faluas"


«Recordo a última tarde que fui a Penha de França. Era em Agosto e a atmosfera enovoada, mas de finíssima cinza, não de pérola transluzente, baralhava as linhas da larga paisagem. O rio mal se distinguia da terra pela aglomeração de bagos de arroz, de pedacitos de cal, onde se denunciavam a custo as povoações da beira-de-água. A noroeste ondulavam com branduras de feltro as serranias que rematam em Sintra, a qual, orgulhosa e teimosa, sempre recortava o céu com o seu característico desenho, mais agudamente e miudamente dentado no castelo. Um bafo, leve, de brisa joeirou a cinza ténue do Sol que ao declinar jorrava oiro vermelho pelo boqueirão da barra. Toda a bacia do rio, feito um mar, se limpou, se alisou, se esmaltou de preciosas cores e nelas corriam as microscópias velas brancas das faluas, tão numerosas, tantas, perseguindo-se, cruzando-se, roçando-se, quase sopradas e caídas aos molhos.»

[M. Teixeira Gomes, in "Agosto Azul"]


(Fotografia de Luís Eme - Lisboa com outras "faluas"...)


terça-feira, 11 de julho de 2023

"Tornaremos a atravessar o rio"...


«Tornaremos a atravessar o rio, que grande mar, e um senhor que vai no barco diz com muito bom modo, isto aqui é o Tejo, o mar é além, e apontou, e então é que reparámos, não se via terra, será possível. Quando desembarcarmos no Montijo ainda andaremos quantos quilómetros, oito, até ao aposento do nosso trabalho, gastou-se tanto dinheiro, mas valeu a pena, e quando voltarmos a Monte Lavre vamos ter muito que contar, para que não se diga que a vida não tem também coisas boas.»

[extraído de um dos capítulos do romance "Levantado do Chão" do nosso Nobel, José Saramago]


(Fotografia de Luís Eme - Tejo)


segunda-feira, 10 de julho de 2023

"Rio Tejo" (felizmente voltou a ser nosso...)


«Mesmo que o Mercado da Primavera não tivesse outro interesse, tinha, sem dúvida, um e importante, o de nos proporcionar durante o tempo da visita, uma nesga do rio Tejo, e de podermos comer ou tomar um café, ali, com o rio por assim dizer aos nossos pés.

Este Tejo é, de facto, um rio abandonado pelos deuses dos rios. Está quase todo tapado, vedado, escondido, armazenado, por assim dizer, lá para o fundo da cidade. Fábricas, estaleiros, sei lá, tudo serve para que o não veja o lisboeta nem mesmo o turista - é bom não esquecer o turista, o sol e o céu azul não bastam para o atrair, é bom ajudar um pouco. E o Tejo... para o observarmos de perto temos de ir por aí fora para as bandas de Vila Franca, ou então desembocar da auto-estrada em Caxias, onde ele ainda não é mar mas também já não é rio.»

[parte inicial de uma das memoráveis crónicas de Maria Judite de Carvalho, imortalizadas no livro, "Este Tempo", datada de Junho de 1971]

Nota: Felizmente já neste novo século conseguimos resgatar o Tejo, voltámos a ter as suas margens libertas, para todos nós o pudermos usufruir...


(Fotografia de Luís Eme - Lisboa)