sexta-feira, 28 de junho de 2024

"A Água-Furtada"

 

A Água-Furtada

«Mas a vista era o melhor do quarto. Daquela água furtada seguia-se o Tejo por aí acima, desde o mar até perder-se à esquerda. Em redor as casas ficavam devassadas por aquela janela de telhado e as traseiras dos prédios com a actividade das criadas davam ao Antunes a impressão de entrar no segredo dos andares. Uma por uma, cada janela por onde os seus olhos entravam sabiam-lhe a ninho.

A cama de ferro, a mesa de pinho, a cómoda indigente, o lavatório inventado e o espelho da lata justo para a cara... não havia mais remédio do que ir recompensar-se no panorama.

Do seu novo quarto. Lisboa parecia ao Antunes uma cidade desconhecida com as traseiras de fora. Interiormente, parecia-lhe que a sua vida acabava de bem merecer aquele franciscanismo. Mas o verdadeiro merecimento deste novo quarto para o Antunes consistia em que tudo o que a ele tinha acontecido até esta água-furtada era para rasgar. Só depois de bem rasgado tudo o que de até este quarto é que Antunes poderia então começar a pensar na maneira de arranjar para si uma nova alma mais competente.»

[Almada Negreiros, in "Nome de Guerra"]


(Fotografia de Luís Eme - Lisboa)


Sem comentários:

Enviar um comentário