domingo, 28 de janeiro de 2024

"Écloga"

 

Écloga

Pastora, grácil, vieste,
sempre caminho do Sul...
E rosa brava, trouxeste,
nos cabelos, um agreste
céu azul...

Tu me encontraste, pastora,
velado, sem nenhum céu.
Mas agora um céu me doura
a vida que, muito embora,
se perdeu...

Era nas margens do Tejo...
(Nem noutras margens seria).
Sobre nós dois, o adejo
das gaivotas, num desejo
de alegria...

E não mudou o cenário
para pastor e pastora.
Mas o Fado, sempre vário, 
muda a história do cenário,
de hora a hora...

[...]

E condenaram-me a tanto:
viver, viver... e sem ti!
Vivendo sem no entanto
me ausentar daquele encanto
que perdi...

O Tejo, verde e correcto,
como no tempo passado...
Eu, porém, mais inquieto,
e, por este mal secreto,
- tão mudado!

[David Mourão-Ferreira, in "A Secreta Viagem"]

(Fotografia de Luís Eme - Trafaria)

quinta-feira, 25 de janeiro de 2024

"Poema da Memória"


Poema da Memória
 
Havia no meu tempo um rio chamado Tejo
que se estendia ao Sol na linha do horizonte.
Ia de ponta a ponta, e aos seus olhos parecia
exactamente um espelho
porque, do que sabia,
só um espelho com isso se parecia.
 
De joelhos no banco, o busto inteiriçado,
só tinha olhos para o rio distante,
os olhos do animal embalsamado
mas vivo
na vítrea fixidez dos olhos penetrantes.
 
Diria o rio que havia no seu tempo
um recorte quadrado, ao longe, na linha do horizonte,
onde dois grandes olhos,
grandes e ávidos, fixos e pasmados,
o fitavam sem tréguas nem cansaço.
Eram dois olhos grandes,
olhos de bicho atento
que espera apenas por amor de esperar.
 
E por que não galgar sobre os telhados,
os telhados vermelhos
das casas baixas com varandas verdes
e nas varandas verdes, sardinheiras?
Ai se fosse o da história que voava
com asas grandes, grandes, flutuantes,
e poisava onde bem lhe apetecia,
e espreitava pelos vidros das janelas
das casas baixas com varandas verdes!
Ai que bom seria!
Espreitar não, que é feio,
mas ir até ao longe e tocar nele,
e nele ver os seus olhos repetidos,
grandes e húmidos, vorazes e inocentes.
Como seria bom!
 
Descaem-se-me as pálpebras e, com isso,
(tão simples isso)
não há olhos, nem rio, nem varandas, nem nada.
 
[António Gedeão in Poemas Póstumos]


(Fotografia de Luís Eme - Tejo)