segunda-feira, 28 de março de 2022

"Quase uma Ode ao Tejo"

 

Quase uma Ode ao Tejo

O rio dá cabo de mim. 
Recolho pedras, pedrinhas,
à beira,
onde o cais soçobra.
Nos olhos, pedras, blocos mágicos
limosos, submersos;
pedrinhas, na algibeira, quantas posso
e tenho
com elas tolas teimosias
entre os dedos
curiosos de tudo.
Todas não recolho.
Escolho-as uma a uma.
Atiro algumas ao voo das ondas
e pasmo de ver a cidade
carregar de luzes um navio
que procura o mar.
São luzes enigmáticas, difusas;
outras, fulgurantes,
as que salpicam, o mundo das águas,
o que vou pensar.

O rio dá cabo de mim.
Vejo-o molhar o casco do navio.

[Rui Cinatti, in "Tempo da Cidade"]


(Fotografia de Luís Eme - Tejo)


sexta-feira, 25 de março de 2022

"A Outra Margem"

 

A Outra Margem

O silêncio que me habita vive
numa casa-castelo habitada
por crianças sem olhos, dementes
sempre sempre abandonadas.

Um rio nos separa delas, tanto...
Um rio fundo, feroz, intratável. 
Passar o rio custa muito...
ou não custa - raios! - nada mesmo.

Abrir as portas do castelo-casa,
sentir crianças cegas, destroçadas,
esse o problema 
que me persegue...

Resisto por mais que custe...
Paro perante fachadas.
Pairo no rio e cresço...
temente sempre que uma das portas se abra.

[Rui Cinatti, in "Tempo da Cidade"]


Fotografia de Luís Eme - Cacilhas)