quarta-feira, 13 de agosto de 2025

"Praça João do Rio (ou o segundo poema do português errante)"


"Praça João do Rio"

Lisboa é esta praça com árvores e com pássaros
melros piscos toutinegras rouxinóis
e barcos inconcretos nos telhados onde
o azul do céu é já um mar do avesso
um reflexo do Tejo ou talvez um
pressentimento de ocidente ocado Cabo Raso
um navegar só verbo em navio nenhum.
Lisboa é esta janela de onde vejo
tudo o que não se vê que é o que há mais
em Lisboa onde se mesmo sem ver o Tejo
e onde cada varanda é sempre um cais.
Lisboa é esta praça e esta janela
minha nau capitânia sobre o insondável
dentro de casa eu vou de caravela
Bartolomeu Dias neste mar inavegável
não há Índia perdida que não possa ser achada
Lisboa é esta praça e esta viagem
esta partida mesmo se parada
este embarcar no azul até chegar àquela margem
em cuja linha só o abstracto pensamento passa
a margem única e absoluta não mais que pura imagem
sem precisar sequer sair da Praça
João do Rio número onze quarto direito
onde eu Ulisses vou à proa
além de qualquer cabo e qualquer estreito
em Lisboa por dentro de Lisboa.

[Manuel Alegre, in "Livro do Português Errante"]

(Fotografia de Luis Eme - Lisboa)

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