sábado, 30 de agosto de 2025

"O Mês"...

 

O Mês

Os espelhos partidos vidros restos
as fogueiras os séculos os degredos
saía-se do medo em largos gestos
o mês rompia pelos dedos.
[...]
As sílabas sublevadas o azul o som
partiam-se as vogais no tom inverso.
Era o mês em que Charles Fourier e André Breton
passaram por Lisboa a cavalo num verso.

A subterrânea floração e seu mistério
era o mês com seu rio pela rua
na minha língua abril é um falanstério
na outra face da lua,
[...]
Colhemos então as barcas sobre o Tejo
navegação por dentro - metáforas à solta em cada
rua: Lisboa entre a memória e o desejo
era o mês da pétala lusa.
[...]
Dai-me de novo as grandes subversões idiomáticas
as inesperadas e loucas opções de classe. Dai-me outra vez
as gramáticas perdidas das ilusões fantásticas
as páginas a abrir as manhãs mágicas o mês.

[Manuel Alegre, in "Livro do Português Errante"]

(Fotografia de Luís Eme - Lisboa)


quarta-feira, 20 de agosto de 2025

A "Marcha de Belém"

 

"Marcha de Belém" (2025)

Lisboa tem a cor de uma saudade
 Que canta quando brilha o nosso Tejo
 Lisboa é a dor de uma ansiedade
Que quando não te vê, rouba-te um beijo
E olhando de mansinho a noite escura 
Passando a cidade em sobressalto 
Salpicando a cidade de outras cores 
No preto e banco do chão de basalto
[...]

Henrique Vales


(Fotografia de Luís Eme - Lisboa)

quarta-feira, 13 de agosto de 2025

"Praça João do Rio (ou o segundo poema do português errante)"


"Praça João do Rio"

Lisboa é esta praça com árvores e com pássaros
melros piscos toutinegras rouxinóis
e barcos inconcretos nos telhados onde
o azul do céu é já um mar do avesso
um reflexo do Tejo ou talvez um
pressentimento de ocidente ocado Cabo Raso
um navegar só verbo em navio nenhum.
Lisboa é esta janela de onde vejo
tudo o que não se vê que é o que há mais
em Lisboa onde se mesmo sem ver o Tejo
e onde cada varanda é sempre um cais.
Lisboa é esta praça e esta janela
minha nau capitânia sobre o insondável
dentro de casa eu vou de caravela
Bartolomeu Dias neste mar inavegável
não há Índia perdida que não possa ser achada
Lisboa é esta praça e esta viagem
esta partida mesmo se parada
este embarcar no azul até chegar àquela margem
em cuja linha só o abstracto pensamento passa
a margem única e absoluta não mais que pura imagem
sem precisar sequer sair da Praça
João do Rio número onze quarto direito
onde eu Ulisses vou à proa
além de qualquer cabo e qualquer estreito
em Lisboa por dentro de Lisboa.

[Manuel Alegre, in "Livro do Português Errante"]

(Fotografia de Luis Eme - Lisboa)

terça-feira, 5 de agosto de 2025

A "Lisboa" da Sophia...


Lisboa 

Digo: “Lisboa”

Quando atravesso – vinda do sul – o rio
E a cidade a que chego abre-se como se do seu nome nascesse
Abre-se e ergue-se em sua extensão noturna
Em seu longo luzir de azul e rio
Em seu corpo amontoado de colinas –
Vejo-a melhor porque a digo
Tudo se mostra melhor porque digo
Tudo mostra melhor o seu estar e a sua carência
Porque digo
Lisboa com seu nome de ser e de não-ser
Com seus meandros de espanto insónia e lata
E seu secreto rebrilhar de coisa de teatro
Seu conivente sorrir de intriga e máscara
Enquanto o largo mar a Ocidente se dilata
Lisboa oscilando como uma grande barca
Lisboa cruelmente construida ao longo da sua própria ausência
Digo o nome da cidade
– Digo para ver.

Sophia de Mello Breyner Andresen

(Fotografia de Luís Eme - Lisboa)