domingo, 30 de junho de 2024

"No Fundo do Tejo"


No Fundo do Tejo


Fecho os olhos e vejo
No fundo Tejo
Uma coisa que oscila ao sabor da corrente
Que vai e vem, que deambula rente
Às pedras e conchas macias e frias.
Dias e noites, noites e dias.

Uma coisa que as águas desfazem sem nojo,
Levando-a de rojo
No fundo do Tejo:
Uma coisa que eu vejo,
Uma coisa que eu sinto e não sei o que é,
- Tão longe de mim, tão fora de pé!
[...]

Uma coisa que anda de cá para lá,
De lá para cá,
No fundo do Tejo:
Sem rumo, sem dono, sem nome, sem graça.
- Inútil e triste, como a carcaça
De um caranguejo.

Uma coisa disforme, insensível, alheia.
- Mas que escreve, sem querer, o nome meu na areia!

[Carlos Queirós, in "Desaparecido"]

(Fotografia de Luís Eme - Tejo)


sexta-feira, 28 de junho de 2024

"A Água-Furtada"

 

A Água-Furtada

«Mas a vista era o melhor do quarto. Daquela água furtada seguia-se o Tejo por aí acima, desde o mar até perder-se à esquerda. Em redor as casas ficavam devassadas por aquela janela de telhado e as traseiras dos prédios com a actividade das criadas davam ao Antunes a impressão de entrar no segredo dos andares. Uma por uma, cada janela por onde os seus olhos entravam sabiam-lhe a ninho.

A cama de ferro, a mesa de pinho, a cómoda indigente, o lavatório inventado e o espelho da lata justo para a cara... não havia mais remédio do que ir recompensar-se no panorama.

Do seu novo quarto. Lisboa parecia ao Antunes uma cidade desconhecida com as traseiras de fora. Interiormente, parecia-lhe que a sua vida acabava de bem merecer aquele franciscanismo. Mas o verdadeiro merecimento deste novo quarto para o Antunes consistia em que tudo o que a ele tinha acontecido até esta água-furtada era para rasgar. Só depois de bem rasgado tudo o que de até este quarto é que Antunes poderia então começar a pensar na maneira de arranjar para si uma nova alma mais competente.»

[Almada Negreiros, in "Nome de Guerra"]


(Fotografia de Luís Eme - Lisboa)